18.4.07

CARTEIRA DA SAUDADE- poesia

Saco de minha algibeira
uma velha e gasta carteira,
tão cheia de retratos,
registros de atos e fatos.

Saco da algibeira meu passado...
Ali estou eu no banco da praça,
com um irmão de cada lado,
o braço de um ao outro enlaça.

Sei que despendo esforços vãos,
querendo falar-lhes de mim,
de como me lembro dos tempos bons.
Murmuro saudosa, mesmo assim,
sobre as brincadeiras sem fim,
sobre o repartir, defender, amar...

Fico acariciando com o meu olhar
o brilho do olhar em retrato,
imutável,
disputando a luz com o sorriso
inalterável!
Um que está ali, já partiu... Soluço de mágoa.
Mudo a foto, com olhos rasos d’água.

Agora nos vejo adolescentes,
abraçados entre parentes.
Lá estou de vestido reformado,
vaporoso, levemente engomado,
por minha irmã, de mãos de fada,
que certamente não desprezava
a boa e cara cassa importada.
Vejo mais gente que me foi tirada...

Pego outro com mãos trêmulas, sentindo-me mal,
tanta saudade derrete a lembrança em água e sal!
Guardo tudo. Rápida, guardo a sombra do passado
O presente clama, urge, exige, não admite rival...


Poesia por Maria Luzia martins Villela

VISITA À VELHA SENHORA

- É esta a fotografia de meu enlace!
Leia, leia! Poemas? Recebi diversos...
Meus olhos perquiridores
buscavam, naquela face,
a beleza decantada nos versos
de seus passados amores...
E eu buscava...
Olhos pintalgados de estrelas?
Porfiava por vê-las,
Não as achava.
Cinzas...
Lábios polpudos, tentadores,
boca de melindrosa?
Hoje uma linha, bordejada de fendas.
Ela, ainda vaidosa,
ajeitava a farta gola de rendas,
primorosa!
Co’as mãos de unhas que eram prendas
cor de rosa.
E eu, ali pensando: viço e beleza, são lendas!
Vida enganosa....

TUAS MÃOS

POESIA

TUAS MÃOS



À minha mãe Paula Martins Reis

Em minha mão eu vejo a tua,
como num lago
se vê a lua.
O mesmo gesto,
o mesmo afago,
- como no teu ontem-
hoje trago.

Em minhas mãos acordo tua lembrança.
Nos meus gestos repetidos és tu, não eu!
Tu agias, fada aos meus olhos de criança!
Eu via... na memória tudo se escondeu...

Para num cascatear vigoroso,
borbulhado do inconsciente,
repetir cada ato amoroso
doando a outra geração,
um algo de tua mão.

Como tinhas... Tenho eu:
veias azuladas, rios encarcerados,
a substituir o cetim de outrora,
na geografia dos dorsos engelhados.
Mãe, que saudade eu sinto, hoje, agora!

Maria Luzia Martins Villela

9.4.07

BORBOLETRA DE TAFETÁ- Solidariedade

BORBOLETA DE TAFETÁ ou SOLIDARIEDADE DOS TRISTES

Nica amava as coisas bonitas.

Meias a atraíam. Não havia ainda as de nailon. As de baixo custo eram de grosseira feitura em algodão. As de fio-de-Escócia eram mais delicadas, porém em beleza, ficavam longe das de seda natural. Seus olhinhos vivos discerniam o que era belo e bom. A mãe, tão pobre, só lhe comprava as de algodão. Feias! Sonhava com meias de seda, macias e brilhantes.

Visitava algumas vezes a madrinha, parenta rica. Pediu-lhe, então, que lhe desse as meias de seda que desfiassem. Explicou que serviriam para brincar com a boneca que ganhara no Natal. Tendo obtido algumas, cortou-as, fez arremates e conseguiu belas soquetes de seda. A mãe se admirava das idéias e da precocidade de Nica para lidar com costura. Nem sabia ler!

Ao entrar para o grupo escolar ganhou da madrinha não só uma bolsa para levar o material e lanche, como também um guarda-sol rosa, florido e belo! Com a costureira da vizinhança obteve um retalho de tafetá rosa e tendo dez reis na bolsinha de feltro, marchou resoluta para o pequeno bangalô amarelo onde uma placa de papelão, manuscrita, indicava: “Passa-se trou-trou” (arremate com furinhos).

Lá se foi Nika de meias de seda, com o uniforme da escolar: a blusinha de algodão branquinho até brilhava, engomada com capricho pela mãe; impecável a saia marinho de pregas e no alto da cabeça, o laço de tafetá, durinho. Parecia uma grande borboleta assentada no cocuruto.

O sol mal se levantara, mas se numa mão ia a bolsa escolar, na outra ia o guarda-sol, aberto, imprimindo-lhe reflexos róseos nas faces.

Caminhava, espigada e serena, sabendo que pessoas voltavam cabeças para a olharem. Aquela figura chamava atenção no meio da criançada que ia para a escola de uniforme mal-passado, sandália ou chinelo bem surrados. Nica parecia saída de um quadro a óleo suavemente colorido.

A “ricaça” metida, também abalou a menina de blusa encardida, de carapinha alvoroçada, que novinha, no segundo ano de escola, já precisava ganhar a vida cuidando de crianças menores. Aquela visão de luxo e cores feriu seu senso de justiça. Mesmo sem saber o que a movia avançou, arrebatou o guarda-sol de Nica, jogando-o no chão e antes de qualquer reação arrancou-lhe o rico laçarote e pisou-o.

Gargalhadas aplaudiram a agressora.

Não houve reação. Nica, perplexa, indagava o por quê e chorava. As lágrimas abrandaram alguns corações. Duas meninas recolheram o guarda-sol e o laço e os deram para Nica.

- Chora não! É só lavar, fica tudo novo! Quer ser nossa amiga? Como você se chama?
Nica maravilhou-se. Viu a flor do lodo, viu rosa entre espinhos, viu o sol entre nuvens... Sorriu entre lágrimas !


Por Maria Luzia Martins Villela

Publicado em SOLETRANDO da FOLHA DA REGIÃO DE ARAÇATUBA 2007

25.3.07

Jovem Bardo

I - JOVEM BARDO


Na calada noite insone, afloraste.
O poema primeiro que me mandaste,
lá estava inteiro, belo, tão suave...
Como terno arrulho de doce ave!

Em a minha enternecida memória
lembro, havia certeza de glória
esperando pelo meu jovem bardo.
- Que te fez a vida? Foi-te um fardo?

Sufocou teu esplendoroso criar?
Fazias-me, as mãos, o peito apertar.
Um indomado coração saltava.

Desenfreado galope! Magoava,
pam , pam . Romperia? Dava receios!
Éramos jovens, de sonhos tão cheios!
*
Ias para outras plagas...
Voltarias!
Atravessarias penhas e fragas...
Prometeste.
Um dia voltaste; o mesmo não foste.
Não mais vieste, aos poucos... Foste!
(Pensei assim.)
*
Hoje chegaste e, nem sabes!
Nem eu sabia! Que dentro de mim,
eu te escondia!

Poesia de Maria Luzia Martins Villela

Motorista e Economista

MOTORISTA E ECONOMISTA

O economista era surdo. O longo convívio com Melquíades, seu motorista, nas demoradas e contínuas viagens, havia quebrado as barreiras convencionais entre eles. Melquíades sentia-se à vontade para expor suas opiniões.

- Pois é, doutor! Eu quando fui, pelas primeiras vezes, na Vinte e Cinco de Março, ficava pensando: Meu Deus, esse povão come pelo menos duas vezes por dia! De onde vem comida para todos? Era rua e rua até chegar ao subúrbio! Fora da cidade, eu só via poucas hortas, muitas fábricas e enormes plantações de pínus e de eucalipto e nada de roça! Então fiquei sabendo que o Brasil produzia 80% dos alimentos, mas o que me espantou foi saber que os 20% restantes entravam mais baratos do que os plantados aqui! Então, eu vi que era melhor importar 100% dos alimentos! Como o governo não via, se eu que sou homem simples percebi? O povo poderia comer melhor e mais barato! Porque o governo não faz isso? Devia fazer. Não é mesmo, doutor?

O economista surdo só balançava a cabeça para frente e para trás, em cochilos parecendo aprovação. A esposa dele, que ouvia até tique-taque de relógio de pulso, sentada no banco de trás não se conteve:

- Melquíades, está falando um absurdo! O certo é o governo criar maneiras de estimular a produção, todos países subvencionam sua produção agrícola e gritam para que os outros não façam o mesmo. O negócio é exportar e não importar!

- Dona Lea, a senhora tá por fora! E não é só alimento que é mais barato quando importado. Tudo é mais barato. Tem mais é que se importar tudo! Né mesmo doutor?

Novos balanços surdo-cochilosos de cabeça.

-Tá vendo, dona Lea? Aprendi muito andando com o doutor! Mas tenho também minha cabeça para pensar!

- Melquíades, acho que é desgaste tentar rebater tais absurdos!

- Dona Lea, a senhora me desculpe, mas não é absurdo. Veja se tem cabimento: O nosso petróleo custa oito dólares o barril para ser tirado e levado para a refinaria, por que nossa gasolina e nosso diesel custam tão caro por litro? Imagine, cada três litros de gasolina paga um barril!

- Tem dó, Melquiades! A Petrobrás é empresa e o petróleo dela tem que valer o quanto custa o petróleo no mundo. Se não for assim para que refinar? Melhor vender bruto a sessenta ou setenta ou sabe lá Deus quantos dólares o barril!

- A senhora se engana. Não pode ser assim. Sabe que na Bolívia o litro de gasolina, hoje, está a R$ 1,30? O povo paga pouco pelo combustível! Fala a verdade: Não é melhor que entre aqui por esse preço? Não é melhor importar tudo?

- Bem, vou concordar se você me esclarecer uma coisa: o país que nada produz, nada exporta, onde arranja dinheiro para comprar?

- Ué! Fácil ! O governo emite.

- Brilhante! Melquíades, se o Lula o chamar para ministro da fazenda, aceite. O Brasil estará salvo!

- E não é mesmo, dona Lea? Eu sabia que a senhora era inteligente e ia perceber...

Vejam: taí a salvação do Brasil!

PS: As referências numéricas e o teor das idéias são de responsabilidade total de Melquíades. A ele os créditos.

Publicado em "Soletrando" da "Folha de Região" de Araçatuba 20/03/07. Época de escolha ministerial... Maria Luzia Martins Villela

30.1.07

CONVERSA QUE NÃO HOUVE


Maria Luzia Villela

Flávio era lerdo para escrever, suas cartas, parecia a Ester, demoravam séculos para chegar. Quando, enfim, ela as recebia, sua boca secava-se, coração disparava, tremia-se toda. Era paixão, amor, loucura. Em fins de semana prolongados Flávio vinha até Rio Claro e amavam-se como doidos. Suprimento de espera.

Marcou-a aquele dia em que Neuza, moça da sua vizinhança, freqüentadora da mesma faculdade de Flávio, em Sorocaba, disse-lhe:

- Tenha cautela, Ester, já vi, por três vezes, seu namorado com a mesma moça tomando o ônibus. Estou certa de que tem outra namorada lá.

Deus! Seu mundo desmoronou-se. Sentia-se dele, ele jurava ser dela. Traição, pânico, ódio, dor... O quê? A demora das cartas seria sintoma?

Não esperou receber a dispensa, dispensou: “Não venha me ver, não o amo mais.”
E a carta foi pelo correio como uma espada bifurcando o caminho... Casou –se, ela; anos depois, ele.

De coração, ela pertenceu a Flávio, toda sua vida. Às vezes pensava: “E se tivéssemos conversado sobre o assunto?” Haveria mesmo a outra? Fora com ela que ele se casara? De repente, sentia que nela não deviam caber tais indagações, pois...

Que importa... ? Era seguir a vida e ser boa esposa.

Indagações teimosas...

Miniconto- Araçatuba, S/P Janeiro 2007

21.1.07

Mães

Maria Luzia Villela

Coisa boa para comer era rara.

Nica ouvia contar do farturão que a família desfrutava no tempo em que viviam na roça. Leite de vaca e cabra à vontade, queijos manteiga, frutas do pomar e do cerrado. Gabirobas. Este nome guardara: um dia comeria essa fruta. Cana caiana...

Havia uma touceira dessa cana plantada no quintal, de vez em quando a mãe descascava uma e cortava em toretes de cinco centímetros e estes em quatro palitos. Eram mastigados até se transformarem em ásperos bagaços, sem sabor. Na trabalhosa mastigação o caldo docinho escapava um pouco pelo canto da boca. Muito bom.

No pequeno quintal da cidade a mãe fazia milagre. Plantava verduras num trecho cercado e milho ao longo das cercas. Assim Nica pôde conhecer o sabor do curau e o do milho verde assado no borralho. Que borralho, ali na casa da cidade, havia: tanto no quintal, na armação de tijolos para ferver roupa, como no fogão à lenha. Outro cercadinho abrigava oito galinhas e um galo. Ovo era a mistura principal e por isso o galo era quase dispensável, pois ovos para chocar... Só de longe em longe. No ninho havia um ovo de madeira, o indez, para estimular as galinhas à botação.

Lá de vez em quando, a mãe ia guardando um ovo por dia até juntar doze e então punha galinha para chocar e uma ninhada de pintinhos vinha a movimentar o quintal. A galinha mãe, ciscando daqui e dali, dava migalhas quase invisíveis aos seus pintinhos; às vezes puxava uma longa minhoca para eles. Tinha que defendê-la contra a gula do galo e das outras galinhas. Assim os pintinhos, como ela, só contavam com a mãe. Galo, pai desnaturado...

Com ela, pior! Pai nem havia em casa....

Mini-conto

20.1.07

Açúcar Mascavo

Maria Luzia Villela

Era bem cedo. Nica tinha ainda remelas nos olhos, sequer fora escovar os dentes. A prosaria que ouviu arrancou-a da cama. Cheia de curiosidade chegou à porta com os olhinhos vivos, debaixo de sobrancelhas bem curvas que até pareciam pontos de interrogação deitados na testa.

Viu chegar uma estranha saca cheia de estranha substância. Eram pobres e pela expressão alegre da mãe pôde perceber que era algo muito bom. A saca foi posta no quartinho de despejo: um puxado de madeira arrimado na parede da pequena casa.

Esperou os homens partirem debaixo de muitas expressões de gratidão da mãe para poder indagar:

- Qu’isso, mãe?

- É açúcar preto, filha! Assim a gente fala na roça, aqui na cidade é chamado açúcar mascavo Prova um pouquinho.

Provou, mas não gostou muito, era doce, mas de gosto esquisito para quem só experimentara açúcar branco. A fisionomia da menina, torcendo o nariz fez a mãe rir e dizer:

- Peraí , menina, que você vai ver quanta coisa boa a mãe vai fazer com esse açúcar!

E foi assim que depois do almoço a mãe lhe apresentou o “puxa-puxa”. E, apertando mais o ponto do melado, os pirulitos. A mãe prometeu bater melado com farinha à noite. A menina mal podia esperar que anoitecesse. Devia ser muito bom.

A toda hora Nica ia ver a saca que porejava uma substância viscosa: o açúcar sensível ao calorão da tarde.As abelhas haviam descoberto o filão e enxameavam ao redor da saca, pousavam, metiam a trombinha e levantavam vôo.Fascinada acompanhava as abelhas com os olhos. Devagarinho estendeu a mão sobre a saca de açúcar, deixando-a imóvel. Um convite para que as abelhas pousassem e repousassem.

- Mãe, vem ver quanta abelha! Elas passam pelos vãos das tábuas!

- Deixe, filha, o açúcar dá para nós e para elas. Tome cuidado, que a picada de abelha dói.

- Elas são mansinhas. Não picam não! Mãe, vem ver. Tem uma que é tão mansinha que é minha amiga.. Olhe, mãe, ela senta na minha mão! Vou alisar a costinha dela. Ai, mãe, ai ai! sopra, mãe! Sopra...

Mini-Conto

O Romantismo das Crendices

Maria Luzia Villela

Crendices populares revestem-se de encanto e romance..
Nasceu-te uma criança? A primeira unha que cortares coloca no tinteiro de uma pessoa culta e ela será escritora!

Nasceu menina? Enterra seu cordão umbilical sob uma roseira e ela será linda! Foi menino ? Enterra o “umbigo” sob uma árvore alta, e grossa e ele será alto e forte. Se tu és um cantor frustrado e sonhas com as glórias do palco para teu filho, procura uma porteira, destas que “cantam”, e sob ela planta o umbigo. O rebento será cantor.

Tudo lindo. Os pais “podendo” mexer no destino dos filhos, “dando” a eles o que pensam ser o melhor. Assim só teríamos: moças belas, rapazes cantadores (não nesse sentido ...), robustos e altos . E, todos bem voltados para as letras.

Mas vem o devastador progresso, destruindo o romantismo das crendices.

Onde estão os tinteiros nos quais, molham as penas os intelectuais? Como enfiar unhas, nas cargas já preparadas das canetas atuais? E que são descartáveis! Veja lá, unhas do bebê nos lixões! Nunca!

E na cidade grande onde achar porteira rangedeira? Jardim com roseiras? Tão raros! Dá para achar vasos com rosas miúdas... mas só bonitinha / vai ser a mocinha!

Árvores grandes? Há nos bosques municipais... Trabalhoso, mas pelo filho qualquer sacrifício vale, mas o que adianta se o ar poluído, pelo forte trânsito, gera esta bronquite no bebê?

E os cordões umbilicais, pelo jeito, têm novo destino. Estão a ganhar perenização nos bancos de congelamento. “Criada em setembro de 2001, a rede de bancos públicos de sangue de cordões umbilicais e placentários (BrasilCord) possui hoje dois bancos em funcionamento, o do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e o do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Este segundo coordena a implantação dos bancos no Estado de São Paulo que aguardam algumas liberações federais para coletar o material: o do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto - ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)... Atualmente o Inca possui 1.200 cordões armazenados. O banco do Albert Einstein contém 1.100.” (Internet) . A meta imediata é chegar aos 20.000.

Se crendice valesse, friorentos - encapotados em pleno verão - deveriam ser os jovens cujos cordões foram congelados! Mamãe pôs minha unha no tinteiro de meu tio Francisco, médico, e eu não me tornei médica.

Crendice não nos vale . Só Deus.


(Crônica publicada na Folha da Região, Araçatuba-SP, 17/1/2007)

Boa Pergunta?

Maria Luzia Villela

Mariana entrou na sala como um alegre cântico:
- Vó, vozinha!
Olhei-a com olhos de coruja que acha seus pimpolhos os mais belos; completei com ouvido preparado para vozes doces como sonatas ao luar. Vó é para isso!
- Oi, filhota! Vou pôr o computador em espera, para a gente conversar.
- Ia entrar na Internet?
- Não. Vou escrever uma crônica para ENTRELINHAS. O Consa tirou férias.
- Que é Crônica? Já ouvi falar muitas vezes, mas não sei que bicho é esse.
Na mesma hora, pôs a mão na boca, temia ter menosprezado o meu trabalho. Fingi não ouvir, procurei ser bem simples para esclarecer a um jovem espírito curioso:
- Crônica é algo que se escreve para jornal ou revista, ocupando sempre o mesmo espaço e lugar . O escritor é sempre o mesmo que agrada, distrai e às vezes até informa, criando um vínculo entre o escritor e o leitor que, logo ao abrir o Jornal, vai ver o que seu cronista predileto produziu.
-Vó, que é vínculo? (Não estaria eu sendo simples?!)
- É uma ligação, um laço.
- Tá bom! Esse nome- crônica- é engraçado! De onde saiu?
- Mariana: os povos antigos tinham muitos deuses, sempre cruéis e com defeitos humanos sublimados ou seja - aumentados ao máximo. Um deus grego chamado Cronos, que quer dizer Tempo, devorava os próprios filhos! Cícero, um homem notável da Roma antiga, explicava que isso era uma figura: o Tempo não só devora os anos, mas também todos que passam por eles. Os romanos deram a esse deus o nome de Saturno. E Júpiter, principal deus romano, o acorrentou, submetendo-o ao curso dos astros. Por isso os romanos tinham a estátua de Saturno amarrada com cadeias e só as tiravam nas Saturnais, dias de festa desse deus, em dezembro.
-Ái, vó! Falou bastante, mas e daí? Porque a crônica tomou esse nome?
- Falha nossa! É que a crônica tem aspecto passageiro, uma hoje, outra amanhã... Deve abordar assuntos da época, ou assuntos que, apesar de antigos, se ligam de alguma forma ao tempo em que a crônica é escrita . Pode ser filosófica, pois os homens pensam, indagam sempre as mesmas coisas em todos os tempos; pode ser lírica pois o olhar mágico do poeta pode, em certos momentos, estar em qualquer pessoa; pode ser descritiva ou seja viva como fotografia, e dinâmica como um filme; pode ser narrativa contando fatos da época, buscando inferências noutros tempos...
-Vó!
- Que foi?
- É ruuuim! Já sei que presente eu vou te dar!
- O que será ? Ardo de curiosidade!
- Depois dessa tal de inferência! Vô te contar...! Vou dar um dicionário para a senhora achar palavras simples!
Valha-me Deus! Essa juventude...Eu? Tão simples!!!

(Crônica publicada na Folha da Região, Araçatuba-SP, 2/1/2007)